Coluna

ENTRE SONHOS E GIRASSÓIS

Ediel Ribeiro durante a bienal do livro

Rio - As pessoas têm cobrado, a mim e a Sheila Ferreira, a continuação do nosso primeiro romance “Sonhos são Azuis”.

As perguntas são variadas: “Já começou a escrever?” “Está escrevendo?” “Qual o título?" “Erick e Lara terminam juntos?”

Nem todas as perguntas podem ser respondidas, por motivos óbvios. 

Outra, sim.

E sim, já estamos escrevendo. O título do livro é “Entre Sonhos e Girassóis”.

A história começa onde acaba o primeiro livro: Erick chega  no presídio para cumprir pena pelo suposto assassinato da agente literária...

Apesar dos personagens centrais serem os mesmos, não é uma continuação. Você pode ler o segundo livro sem ter, necessariamente, lido o primeiro.

Mas seria ótimo se lessem os dois. 

Vou postar aqui o primeiro capítulo de “Entre Sonhos e Girassóis”, espero que gostem.

ERA UMA TERÇA-FEIRA quando o ônibus atravessou o enorme portão de entrada do presídio. De uma guarita, no alto do muro, guardas fortemente armados vigiavam o vai-e-vem dos detentos. O portão é trancado atrás de nós. O barulho de ferros batendo, e da tranca se fechando, é forte e assustador.

O ônibus, quase vazio, desliza pelo pátio. Poucos detentos espalhados pelos bancos. Entre eles, eu. O ônibus começou a trepidar, desfalecendo, quando o motorista freou no meio do pátio interno. O motor foi desligado, caindo um silêncio sufocante sobre o pátio. Dava para sentir o cheiro do combustível. Olhei à minha volta. Não havia ninguém esperando para nos dar as boas vindas. Apenas dois guardas armados, ao lado do ônibus.   

A sensação é a de que você é jogado num buraco e que está sendo sepultado por camadas de vento, frio, escuridão e dor, de onde nunca mais vai sair. Era preciso arrojo, amor e esperança para suportar a vida ali dentro. Eu tinha os três. 

O motorista saiu do seu lugar e, observado pelo outro guarda armado, arrastou-se entre os bancos, sacou as chaves, e abriu as algemas que nos prendiam aos bancos da frente. 

Ok, rapazes, vamos lá! Bem-vindos ao lar! - disse ele,
sorrindo.

Levantamos e descemos do ônibus, um atrás do outro, a passos de tartaruga, como se preferíssemos ficar onde estávamos. Saímos do ônibus. 

De repente, no meio do pátio, estou respirando um ar denso e com um forte cheiro de mofo, como se aquele fosse um lugar abandonado. Uma coisa era certa, ali dentro, o tempo, aquele que eu conhecia e dentro do qual vivia lá fora, já não era o mesmo. Depois de deixar para trás o ônibus, seguimos, eu e mais os cinco novos detentos, por um corredor que atravessava todo o pátio interno. No final do corredor, fomos colocados lado a lado, nus, e um agente com uma mangueira lavou nossos corpos. Primeiro de frente,  depois, de costas. O lugar era frio. Depois da “lavagem”, recebemos uniformes, chinelos, e roupas de cama de um outro guarda que estava sentado em uma mesa. Dalí, caminhamos em fila indiana, em direção a nossas celas, seguindo um guarda magro e de feições tristes. 

Um dos detentos, à minha frente, era um tipo alto, esguio e delicado, que tremia e se locomovia com dificuldade. De uma maneira ou de outra, parecia que a vida tinha sido cruel com ele. O outro, atrás de mim, era baixo e franzino. Os outros três me pareciam homens comuns, profissionais liberais, talvez, nenhum deles parecia ter disposição para cometer qualquer tipo de crime. O baixinho, então, não parecia ter disposição para matar sequer uma barata. 

O guarda triste apontou para uma cela no meio do corredor. Na parede estava escrito: pavilhão 2. Entrei. A porta da cela deslizou e fechou bruscamente as minhas costas. Trancada automaticamente. E o guarda se afastou seguido pelos outros detentos.

A cela ficava no segundo piso da penitenciária, no meio de um imenso corredor, à esquerda. E dava para  a porta de outras celas, lotadas de bêbados, falsários, viciados e vagabundos. 

Segui porta adentro. O odor de mofo e urina da cela me abateu. A cela não tinha janelas. Era um cofre lacrado. O vento úmido e frio vinha do corredor. Era uma escuridão quase total. Uma luz noturna brilhava vagamente sobre nossas cabeças. O silêncio pesava. O murmúrio noturno, triste e deprimido de almas que dormiam só foi quebrado pelo barulho da porta da cela batendo às minhas costas.

A cela não era muito espaçosa. Dava para ver pouco mais do que um beliche, uma pia de metal  e um mictório de aço no chão.

Me puseram na cela de um sujeito gordo, com-ar-de-poucos-amigos, chamado Bud. 

Ele lia um livro, deitado na parte de baixo do beliche. Usava uns óculos com uma das lentes trincada.

— Meu nome é Erick - disse, estendendo-lhe a mão.

O obtuso Bud botou os óculos em cima da cabeça e me encarou.

— Por que você foi preso? - perguntou, sem antes apertar minha mão. 

Aquela era uma pergunta difícil de responder, até para mim. Pelo menos, naquele momento. Eu realmente não sabia o que tinha feito nem porque estava naquele lugar hostil. Mas o gordo pareceu não estar muito interessado na resposta. Era uma pergunta retórica. Botou os óculos na cara e voltou a ler o livro. Ficou um bocado de tempo sem falar nada, só lendo. Depois, levantou os olhos pequenos como os de um pássaro agourento e me olhou de cima a baixo.

— É só para saber se posso fechar os malditos olhos à noite ou se você é uma espécie de maníaco-assassino-filho-da-puta, disse ele, sem alterar a fisionomia ou o tom de voz.

— Pode dormir em paz - disse.

— Certo - murmurou. - Se importa de ficar em cima? Tenho medo de altura. - Você tem medo de altura? 

- Não - respondi, embora a pergunta me parecesse ridícula.

— Tá certo - aquiesceu. - Ótimo.

Bati no travesseiro que me pareceu macio. O lençol e o cobertor estavam puídos, mas pareciam limpos o suficiente. O cheiro era bom.

Usei o mictório, lavei o rosto na pia, tirei os chinelos e deixei-os ao lado da cama do homem gordo. Subi e me joguei na cama de cima. Fiquei ali deitado no escuro, ouvindo os ruídos da prisão que parcialmente dormia. Ali deitado fiquei imaginando figuras desenhadas no reboco do teto, coberto por uma pintura pesada e grosseira, até que as luzes se apagaram e a cela mergulhou na escuridão.

Boa noite, amigo! - disse o gordo, da cama debaixo.

Boa noite!

Bud - fiquei sabendo depois - tinha esse apelido porque era um homem grande, de quase dois metros, barbudo, parecido com o ator Bud Spencer. Tinha mais ou menos cinquenta anos; um rosto sofrido e um pouco perturbado. Seus olhos eram verdes, melancólicos, talvez tenham visto tristeza demais. Mas ainda assim muito bonitos. Era um homem gordo e pesado. Tinha a pele queimada de sol, uma barriga grande e um pescoço largo. Não era de muita conversa. Bebia muito. Passava os dias e, às vezes, as noites lendo. Falava sozinho pelos cantos, e, quando, mesmo visivelmente contrariado, se dispunha a conversar, falava coisas desconexas. Fazia uma salada de existencialismo francês com budismo tibetano, para se fazer entender. E nada. Ninguém entendia nem dava à mínima para as elucubrações dele. Bêbados são como crianças, você finge que ouve, mas não dá à mínima para o que eles dizem. Fodam-se!

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