Coluna

SOMENTE UMA FOTO

O que eu farei se somente restar uma foto? Um pouco amarelada nas bordas, como um portal do tempo, onde eu reconheça o dia e a hora, tenha na lembrança as pessoas que circulavam por ali, naquele momento, e me lembre do jardim que escolhemos para ilustrá-la, e como era o som que os pássaros faziam, ou as conversas e risadas das pessoas em volta. E pudesse lembrar, exatamente, o que eu pensava na hora, e por que ríamos, e o que dissemos um ao outro. E também o rosto daquela mulher que pedimos para que apertasse o botão da velha Nikon, que eu tratava com tanto carinho.

E se restar somente uma música, que toca de vez em quando no rádio, e estando onde estiver ela nos leva nas asas do vento, e no embalo das notas até aquela noite, quando o cantor, nosso favorito, resolveu cantá-la, ou mesmo se fosse aquela da nossa primeira dança, ou quando demos o primeiro beijo?

E se o mesmo céu ficasse eternizado na paisagem noturna, sem a lua para atrapalhar com o seu brilho, e nossos dedos resolveram escolher um conjunto delas e, dentre elas, aquela que passou a ser a nossa preferida? Nas noites estreladas ela estaria ali, sempre, com o tempo parado, e ela, tão somente ela, sendo a nossa testemunha.

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Foto:  Erik Mclean sur Unsplash

E se aquela pequena casa ainda existisse, mesmo depois que um edifício enorme foi construído no seu lugar, desaparecida dentro dos pilotis, do hall de entrada, e todas as vezes que eu parasse diante daquele endereço e sempre pudesse vê-la, e ainda imaginar a sala iluminada e o barulho dos nossos passos ainda existissem?

Tudo parece saudosismo, coisas de gente velha, que se lança para o passado apenas para poder vivê-lo mais uma vez.

Mas, não é nada disso. O que eu penso é o que eu farei se somente restar essas lembranças. Apenas posso dizer que elas existem, e se existem é por alguma razão da própria existência. Quantas vezes o contar da história é o preâmbulo do sono que teima em não chegar? Se as ouvimos de adultos nos nossos ouvidos de criança, no futuro seremos nós mesmos, já adultos, a recontar as histórias que vivemos.

Só conta histórias quem as desenhou, as criou, as viveu. Não existem para dar lições de vida ou de experiências únicas, e cada pessoa tem uma única história para si mesma, e que gosta de relembrar.

Os mais críticos dirão que são histórias de gente velha, que já morreu. Ledo engano: são histórias de gente que as viveu.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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