Coluna

Tiro ao alvo no Pico do Amor

- Athaliba, lá no Pico do Amor, junto ao memorial dedicado ao poeta Antônio Crispim, idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, mas, inacabado, Deolindo projeta a construção de estande de tiros, com a finalidade de atender os clientes do Clube de Tiro Bidu, que funcionará em frente à sede da Prefeitura de Alucard. A notícia do inusitado empreendimento ganhou ampla discussão após a entrevista realizada pela repórter Magnólia na Rádio Arco-Íris, quando o empreendedor deu detalhes sobre o funcionamento do inédito negócio na cidade.

A chefe de reportagem da emissora, Kaiana, em consequência da grande quantidade de telefonemas recebidos sobre a entrevista, mandou Magnólia ir às ruas para fazer o “povo-fala”, ou seja, enquete, recolhendo opiniões da população. Na Praça Redonda, principal área de circulação de pessoas, onde desembocam ruas de estabelecimentos comerciais, ela colheu os depoimentos de agricultor de Ipoema, de empregado da subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, de lojista do setor de laticínios, de empregada doméstica, de estudantes e de minerador da Yale, além de prostitutas, lésbicas e gays.

- Qual foi o resultado da enquete, Marineth?

- A larga maioria, Athaliba, manifestou apoio à medida, em consonância com o decreto do presidente da República que flexibilizou o porte de arma para diversos segmentos da sociedade, inclusive periodistas que atuam em cobertura jornalística policial. E você vai tirar porte de arma para seu “pica-pau” e treinar tiro ao alvo no estande no Pico do Amor?

- Não provoca Marineth, que o assunto é da maior seriedade. O meu “pica-pau” destina-se, única e exclusivamente, a alvejar xaninhas. O jornal O Trilho, em editorial, alinhando à política da extrema-direita, sem fundamento técnico, defendeu o decreto, com o título “O cidadão honesto exigiu”. O texto diz que “o cidadão honesto exigiu o direito de ter a sua arma. O decreto de agora é a resposta a esta escolha democrática. Vamos respeitar a vontade popular”.

- Isso é um absurdo, Athaliba, pois contradiz, por exemplo, pesquisa recente na qual 64% das pessoas entrevistadas se manifestaram contra o porte de arma de fogo. Um representante de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmou que “a nova flexibilização contraria todas as evidências científicas nacionais e internacionais, que indicam que quanto mais armas em circulação na sociedade mais crimes nós temos, não o contrário”.

- É verdade, Marineth. Uma ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o presidente da República explicasse a medida. E consultores da Câmara e do Senado elaboram pareceres que mostram a inconstitucionalidade do decreto, extrapolando limites legais e, ainda, distorcendo o Estatuto do Desarmamento.

- Mas, Athaliba, em Alucard, essas ponderações passam ao largo das discussões sobre o caso. O empreendedor do clube de tiros e do estande no Pico do Amor captou esse sentimento na população e argumenta que “o porte de arma vai possibilitar o cidadão a garantir a sua própria segurança contra a desenfreada escalada da violência em Alucard, principalmente quando a Yale deixar de explorar a mineração, anunciada para breve”.

- O cara é espertalhão, Marineth. Sabe o quanto a sociedade é retrógrada, atrasada, e aposta todas as fichas no caos generalizado em que Alucard pode mergulhar com o fim da verba da Yale. Ele deve achar que a cidade será um faroeste, transformada em gangs de ladrões. Muito triste o futuro que está reservado à cidade, segundo a ótica de Deolindo.

- A aposta dele, Athaliba, é extrema. Mas, o que pensar do destino de Alucard quando não tiver mais a arrecadação proveniente da Yale? Quais as alternativas de fonte de economia sem a exploração do minério de ferro? Não existe no final do túnel uma nova atividade econômica que possa garantir o statu quo de Alucard.

- O trem vai descarrilar Marineth. É calça de veludo ou bunda de fora. De região bucólica, transformada em cidade e saqueada, primeiramente, pelos exploradores de ouro e, depois, pela extração de minério de ferro, Alucard será terra arrasada. Perdeu há muito tempo a identidade: o Pico Cauã, que ficava acima do nível do mar em quase 1.500 metros. Foi detonado pela Yale até quase 500 metros de profundidade. Ficou apenas uma enorme cratera no local.

- Athaliba, creio que a exploração de minério de ferro em Alucard é caso único no mundo. Acontece no centro da cidade. Todos assistem a destruição da cidade, impassíveis, acovardados, desde 1910, quando ingleses criaram a Itabira Iron One Company Limited, garantindo as reservas de minério e o controle da estrada de ferro que seria construída entre Minas Gerais e o Espírito Santo. A Yale, depois, a partir de 1942, concluiu a destruição.

- Marineth, como sou otimista, estou certo de que o povo de Alucard irá encontrar uma saída. Pois não creio que seja tão masoquista a ponto de se penitenciar, se deixar exterminar na lama de milhões e milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro nas mais de uma dúzia de barragens que podem estourar sem aviso prévio. E espero que os ouvidos do poeta Antônio Crispim, perpetuado na obra do genial artista Genin Guerra, no local, não ouçam os estampidos dos disparos da pratica de tiro ao alvo no estande no Pico do Amor; que os murmúrios, ais e gemidos dos casais que lá buscaram prazer sexual estejam para sempre nele eternizados. Alucardeanos, saudemos nosso poeta maior na exaltação de um dos célebres poemas: “Ó tu, sublime puta encanecida”, incluído no livro o Amor natural.

 

Ó tu, sublime puta encanecida,

Que me negas favores dispensados

Em rubros tempos, quando nossa vida

Eram vagina e fálus entrançados,

 

Agora que estás velha e teus pecados

No rosto se revelam, de saída,

Agora te recolhes aos selados

Desertos da virtude carcomida.

 

E eu queria tão pouco desses peitos,

Da garupa e da bunda que sorria

Em alva aparição no canto escuro.

 

Queria teus encantos já desfeitos

Re-sentir ao império do mais puro

Tesão, e da mais breve fantasia.

 

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e realizou o Concurso de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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