Coluna

UM AMOR INESQUECÍVEL

Era preciso esquecer aquele amor. Isso era tudo que Sônia desejava. Enquanto seu coração pedia o esquecimento, os pensamentos ardiam de vontade de rever os beijos, os momentos felizes, os sorrisos, o olhar brilhante. Sônia nunca entendera o sentido de estar só. A solidão vem acompanhada de perguntas e nenhuma resposta.

Na beira do rio, a correnteza levemente levava pedaços de margem, tudo era calma. Abriu a bolsa e retirou um lenço branco, virgem, não tocado, e nele escreveu o nome do ex-amado. Como um nome pode ter significado tanto para ela? As instruções mandavam colocar além do nome, um objeto que ele dera para serem lançados no rio. Eram tantos objetos de recordação, que Sônia teria de achar muitos outros lenços para serem atirados na água!

Escolhera um brinco. Queria esquecê-lo? Mas precisava. Foram cinco anos convivendo com a canalhice dele, com as mentiras ditas de forma branca e olhar límpido, mas foram também os momentos mais felizes de sua vida. Tudo isso não caberia em um lenço e a força da correnteza não poderia levar.

Foto: morguefile.com
Foto: morguefile.com

Sônia segura o lenço fortemente nas mãos, uma lágrima escondida tinha se aninhado no fundo dele e o embrulho começa a pesar. Quando ela se senta à margem do rio, todas as coisas começam a parecer pequenas, miúdas, mesmo os carros barulhentos atrás dela não são capazes de despertá-la.

Quais são mesmo as palavras a serem ditas? No longo escolher dos objetos, Sônia não lembrava mais das palavras. Não seria importante guardar todas aquelas memórias, como um álbum, qualquer coisa que pudesse fazer com que ela se lembrasse, um querer consertar, ao menos na memória, os desentendidos, os esquecimentos e transformar em coisas tolas tudo aquilo que no passado parecera sério?

Sônia aconchegou o lenço em seu regaço como se o quisesse proteger do desatino de lançá-lo à corrente. As palavras da simpatia lhe vieram à mente, mas a boca se recusava a dizê-las, como se uma profecia dali por diante acontecesse e o retorno se tornaria impossível.

Um sorriso veio até os seus lábios quando lembrou a mordida doce em sua boca, e um braço envolvendo o seu peito a trouxesse levemente para trás, e a tornasse um anjo prestes a alçar voo rumo ao desconhecido. Julgou que a eternidade poderia existir e que todas as possibilidades se realizariam. Por isso nada havia cobrado, nada exigiu, porque tudo o que queria naqueles momentos era sentir um pouco de felicidade.

Um pássaro se agitou no arbusto próximo e a realidade se aproximou novamente de Sônia, como o réptil ardiloso que prepara o bote. Seus olhos abriram e atrás de si nada havia. Somente as pessoas passando apressadas. Por que se cobrava tanto? Por que se sentia responsável pelo final doloroso do seu romance? Teria culpa?

Era preciso ser forte e superar mais uma vez um instante como aquele. Sempre amara demais, e sempre procurava maneiras e fórmulas para poder se superar, tornar aquilo uma página virada. Conseguira outras vezes, conseguiria outra. Tinha dúvidas. Em outras épocas não tivera. Decidira muitas vezes sua vida, sem arrependimentos.

Ninguém tem o benefício de poder arrancar de suas memórias algo que lhe cause dor. Não há remédios, exercícios, nada que possa desviar dos pensamentos aquele algo mais, aquela alguma coisa que acrescentou na sua vida. Não se pode impunemente esquecer o que foi agradável, o que causou prazer. Mesmo que esse prazer venha ensombrecido pelas artimanhas e mentiras. Tudo fica esquecido quando alguém lhe traz o conforto e por alguns momentos a torna a pessoa mais amada do mundo.

Não chorou na despedida e a necessidade de permanecer forte torna você um outro ser. Olhara bem tranquila para ele, sentiu vindo dele um sentimento de fraqueza, não por sentir em algum momento que voltaria atrás, mas viu nos seus olhos um pouco do medo em não ter sido um amor tão grande assim.

Não há segredos para viver, mas viver em segredo não é bom. Mentir para si mesma a pior das coisas. Ninguém poderia sentir a dor que sentia. Mesmo quem perdeu um grande amor. Cada amor é grande na sua maneira de ser. O dela, o grande amor, estava no não se sentir sozinha, se sentir inesquecível, tanto nas palavras doces como ele sabia dizer, como na surpresa diária e confortante e em cada mimo recebido.

Queria enxergar nele o mesmo brilho do seu olhar, mas se contentava em saber que, mesmo sendo aquele olhar vazio e inseguro, significava muito para ela e a entrega com que se deu. Não foi escolhida por ele. Pelo contrário, tinha sido ela que o escolhera e entregou sua vida como se uma necessidade houvesse. E havia.

Não sabia, porém, que não pudesse controlar aquilo. Se sentia capaz de controlar sentimentos.

- Posso ajudar? – uma voz interrompeu seus pensamentos.

Ao se virar, encontrou uma senhora que se aproximara. Percebera ela que o amor lhe fazia tão mal, que o semblante a entregara?

- Isso é amor, não é minha filha? – continuou.

Ela não precisou confirmar. A velha senhora afagou seus cabelos e começou a repetir todas as fórmulas que ela já conhecia. Não se atreveu a mostrar-lhe o lenço com a simpatia que lhe ensinaram.

Ao ver o lenço, no entanto, a senhora percebeu, como se tivesse um dia vivido aquilo.

- Para um velho amor, nada como um novo amor.

Se sentiu mais só ainda.

Ela levantou e continuou em silêncio pela margem do rio, alcançando o passeio e se misturando às outras pessoas.

Já ouvira aquela fórmula. No passado, para esquecer uma paixão se entregara à vida, na procura de outro amor. Não sabia, no entanto, que o destino para curar as pequenas paixões deu-lhe o conhecimento de um verdadeiro amor.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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