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CRÔNICA DE UM ROUBO

Foto: morguefile.com
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Qual a sensação de se sentir roubado quando olhamos no espelho o retrato fiel e perfeito do ladrão? Quando o tempo passa e o criminoso que nós construímos e o tempo foi transformando o rosto, e se disfarçou e sabemos, diante dele, que a confissão não é mais necessária. E no diálogo mudo que estabelecemos as perguntas e as respostas não são mais mistérios para os dois?

Qual foi o momento em nossas vidas que pensamos o dia e a hora em que a decisão que julgamos errada, respondida no futuro, nos transportou para a pergunta: quando eu me roubei de mim?

O futuro quando se vai construindo é um castelo de sonhos que estabelecemos com rostos e profissões ainda nascendo na imaginação, e ele é uma várzea aberta sem obstáculos que a força vital da vida nos alavanca, nos impulsiona. Os sonhos são permitidos a todos. Os sonhos são democráticos, embora possam ser conflitantes com as realidades que não queremos enxergar. Os sonhos são assim, exagerados. No futuro, quando o passado já tem rostos e trajetórias, é o momento em que estabelecemos o balanço de nossas vidas e descobrimos que alguém nos roubou alguma coisa, rompeu algum elo no passado e aconteceu o desvio que não estava programado.

Podemos culpar a nós mesmos, podemos culpar as circunstâncias, mas alguém nos traiu, alguém rompeu a barreira e a muralha da razão e como um dique arrebentado deixou planos e estratégias serem levadas água abaixo.

Foi o impulso, foi uma irresponsabilidade, que nunca poderá ser consertada, nossas defesas foram rompidas e compreendemos como são frágeis os sonhos, como são nuvens, como mudam ao sabor dos acontecimentos.

A esperança morre, ela deixa de existir no coração partido, não o coração quebrado, mas o coração que parte, que foge, que se distancia, que nos é roubado. Nada está sob controle, a menos que nos afastemos da humanidade ou abramos mão dela. A juventude nos dá uma ideia de estarmos certos, e quando ela passa, compreendemos que as nossas supostas certezas não passavam de empáfia e desconhecimento do mundo, ou medo dele. Somos arrogantes com a arrogância vencida.

Somos pura emoção, porque a emoção é uma droga que nos toma. É muito bom se emocionar, se entregar, imaginando que o mundo será sempre um game over, sempre pronto a recomeçar, sempre um recall a existir.

Recentemente falecido, o escritor Philip Roth disse que a morte é injusta. Não acho que a morte seja injusta. O que é injusto é não poder retomar a vida depois de vivida, e aí sim experimentar o mundo como ele deveria ser. O mais perverso é a experiência. Depois que a adquirimos e compreendemos uma forma de viver mais natural e desprendida, que compreendemos o que é amar e ser amado, é hora de ir embora. A diferença é ir embora sabendo os caminhos das pedras e não podendo mais vivê-lo, nem que fosse mais uma vez. E sempre ficar atento para não nos roubarmos de nós mesmos.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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