Belo Horizonte - Fomos, eu e a Sheila, a Belo Horizonte, entrevistar Juliano e Danilo, os filhos do cartunista Nani, para a biografia do cartunista mineiro que estou escrevendo.
Na saída do aeroporto de Confins, antes do encontro com os nossos entrevistados, fizemos um pit stop na 'Cantina do Lucas', no Edifício Maletta, para conhecer os botecos que Nani frequentou com os amigos de 'O Diário', em sua etílica passagem pela capital mineira, antes da ida para o Rio de Janeiro, em 1973.
O lendário Edifício Arcângelo Maletta, nas esquinas da Avenida Augusto de Lima e Rua da Bahia, em Belo Horizonte é muito mais do que um prédio histórico: é um ícone cultural, ponto de encontro de artistas, intelectuais e boêmios. O Maletta foi cenário de resistência contra a ditadura que se instaurou no Brasil em 1964.
Inaugurado em 1961, no centro de Belo Horizonte, entrou para a história da arquitetura mineira como o primeiro edifício com escada rolante do Brasil. Com o passar do tempo, consolidou-se como polo boêmio e cultural, abrigando bares como o ‘Lucas’, o ‘Lua Nova’, e o ‘Pelicano’, espaços frequentados por intelectuais, músicos e escritores como Pedro Nava, Affonso Romano de Sant’Anna, Murilo Rubião, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Carlos Estevão (criador do Amigo da Onça), e os cartunista Son Salvador e Nani, antes da fama.

O Maletta era um oásis cultural, onde escritores, cineastas, atores, músicos, bailarinos e artistas de toda sorte se encontravam, nas décadas de 60, 70 e 80 para tramar uma provável revolução, a derrubada dos militares ou apenas uma música, um livro ou um filme. Nos arredores, orbitavam em volta do Maletta, as redações dos jornais ‘Estado de Minas’, ‘Diário da Tarde’ e ‘O Diário’, conhecido como ‘Diário Católico’, onde Nani começou, na Rua da Bahia, 1.087, ao lado do Maletta; o cine Palladium, o cine Metrópole, e a Faculdade de Direito, na Praça Afonso Arinos. Um raro caso de confluência de todas as artes, culturas, profissões, e sabores.
O edifício, conhecido como centro de boemia e discussão política há mais de 50 anos, é testemunha de momentos marcantes da história da sociedade mineira. A história do Maletta começa no ano de 1918, quando o italiano Arcângelo Maletta comprou por 300 contos de réis o prédio onde funcionava o ‘Grande Hotel’ e iniciou suas atividades em Belo Horizonte. O hotel era localizado na Rua da Bahia, 1.136, esquina com a avenida Paraopeba, atual avenida Augusto de Lima. Lá, se hospedaram importantes figuras da cultura mineira, como o escritor Carlos Drummond de Andrade e o modernista Emílio Moura.
Arcângelo Maletta nasceu na região da Calábria, na Itália, em 18 de novembro de 1875, filho de Vicente e Theresa Maletta. Ele chegou ao Brasil aos 14 anos, com outros imigrantes, para trabalhar na cultura do café em São Paulo. Alguns anos depois, mudou-se para a cidade de Queluz de Minas, onde, já naturalizado brasileiro, trabalhou em um hotel e adquiriu conhecimentos do setor. Maletta administrou o Grande Hotel até 1953, ano de sua morte.
Em 1957, o prédio vendido à Cia de Empreendimentos Gerais, foi demolido e em seu lugar ergueu-se o Edifício Arcângelo Maletta, em homenagem ao último dono do hotel. Na madrugada de 1961, poucos meses depois de inaugurado, um incêndio consumiu parte do edifício Maletta. Sirenes, apitos, ambulâncias: fagulhas e mais fagulhas crepitavam pelos ares. E como aves de rapina, ao caírem bicavam em bandos o próprio asfalto.
A Cantina do Lucas era o bar onde todos os grandes artistas e os estudantes de teatro vinham depois dos shows e das aulas. Centro de resistência política, o boteco é um dos mais tradicionais de Belo Horizonte. Inaugurado em 1962, no térreo do tradicional edifício, o Lucas é um dos bares com mais histórias da cidade. Pela importância do lugar, virou Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de Minas, em dezembro de 1997.
Desde a edificação, os bares do conjunto se integraram à vida cultural da cidade. A Cantina do Lucas era frequentada por intelectuais, escritores, jornalistas, atores e músicos como Murilo Rubião, Nivaldo Ornelas, Wagner Tiso e Milton Nascimento. Outra que sempre era vista nos ‘inferninhos’ do Maletta era a mineira Clara Nunes.
O 'Lucas' teve como funcionário, Olympio Perez Munhoz, conhecido como ‘Seu Olympio’, imortalizado no ‘Guinness Book’ por ser o garçom que permaneceu por mais tempo em atividade no Brasil; e no cardápio da Cantina, ainda em vida, com o ‘Filé Olympio’, carro chefe da casa. Seu Olympio, com mais de 40 anos na cantina, tinha um código para os estudantes e artistas de esquerda quando chegavam os militares ou os policiais do DOPS. O velho garçom dizia, em alto e bom som: “Hoje não tem Salada Russa nem Filé à Cubana.”
O conjunto fervilha com a movimentação de visitantes aos seus bares, restaurantes, brechós e sebos até hoje. Com 19 andares na área comercial e 31 no espaço residencial, o Maletta tem, além de centenas de salas e lojas, 319 apartamentos com cerca de 1.300 habitantes, entre moradores e estudantes organizados em repúblicas.
Além do movimento dos moradores, os corredores do Edifício Maletta fervilham dia e noite com o vai e vem de jovens que, ainda hoje, frequentam os bares do edifício.
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