Coluna

O mito achincalhado

- Athaliba, encontrei a historiadora e profª Anabela, liderança das Aguerridas de Alucard, na praça redonda de Alucard, à tarde de domingo passado. Ela olhava pequeno grupo à frente do monumento de concreto à Bíblia. Ao me ver abriu largo sorriso e foi dizendo: - “A sua presença, Marineth, me traz grande alívio, pois estava seguindo para São Pedro e deparei-me com aquelas pessoas concentradas junto do obelisco bíblico fazendo não sei o quê. Esta cena inusitada me remeteu à carta que recebi de uma aluna achincalhando, desdenhando do mito pés de barro e me pedindo S.O.S. Ela é muito aplicada nos estudos e, ultimamente, vive transtornada”.

E aí, meu amigo, sem compreender, de imediato, o que significava o que Anabela dizia, indaguei a ela o que havia de comum na relação da carta recebida com o grupo alinhado à frente da Bíblia de concreto. Ainda com semblante desalinhado, o que decompunha sensivelmente sua beleza, ela respondeu: - “Na carta, amiga, minha aluna relata brigas constantes entre os pais dela que são evangélicos, devido a opiniões divergentes entre ambos sobre as atitudes do Messias, o presidente da República, que apregoa ser evangélico e que é chamado de mito por seguidores desse segmento religioso. Então, vendo essa gente diante do símbolo místico, fiquei elucubrando sobre as possíveis diferenças que, naturalmente, são comuns numa sociedade plural”

- Marineth, afinal como a situação clareou, desanuviou no horizonte, entre você e Anabela?

- Athaliba, seguinte: a historiadora e profª Anabela, cê precisa conhecê-la, esclareceu que duas pessoas que vivem juntas e compartilham da mesma religião têm opiniões, apreciações, conceitos diferentes sobre o que diz respeito a cada indivíduo. Cê entende, agora?

- Sim, Marineth. É isso mesmo.

- Bem, Athaliba, ela me permitiu ler a carta e disse que, casualmente, vislumbrara naquele ato na praça uma explicação para conversar com sua aluna, pois a adolescente, mergulhada num oceano de dúvidas existenciais, pedia ajuda à Anabela para escapar psicologicamente das brigas do pai e da mãe quando o assunto da conversa era o Messias, o presidente da República.

- Marineth, como ela pretende salvaguardar a aluna das brigas ferrenhas dos pais?

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Estudante pede S.O.S à profª e historiadora Anabela por sofrer consequências das brigas dos pais causadas por divergências sobre o mito pés de barro, que tem olhar 666. (Reprodução da Internet)

- Athaliba, com o argumento de que cada indivíduo é um indivíduo e tem sua própria personalidade, sendo que a individualidade de cada um deve ser respeitada. Para Anabela, a aluna se sente confusa ante as desavenças dos pais por não ter discernimento da propriedade da individualidade da mãe e do pai, confundindo isso com o fato deles promulgar da mesma religião.

- Muito bem, Marineth. E o que a estudante escreveu à Anabela?

- Cê é muito curioso, Athaliba! Esqueceu-se do ditado popular sobre curioso? É quando uma pessoa curiosa tenta descobrir algo da conversa alheia, sem ser chamada, e então alguém do grupo responde ao curioso na lata: “Estamos comendo o c** de curioso”.

- Marineth, deixa de sacanagem. Cê me envolveu no assunto e para ter uma compreensão maior quero conhecer os detalhes. Não sou curioso e nem ansioso. Também não tenho o hábito de invadir a privacidade alheia.

- Desculpe-me, Athaliba. Acalma-se. Trata-se apenas de uma broma.

- Tá, Marineth. Broma à parte, revela o que diz a carta da aluna à profª Anabela.

- Ela escreveu que os pais se atritam cada vez que o Messias, o presidente da República, faz bobagem. Por exemplo, como se comportou sobre o fato do nome dele aparecer no caso do brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O pai da aluna acha que existe complô contra o Messias, enquanto a mãe acredita no envolvimento da família do mito com a milícia. Na atitude dele ao tentar forçar o filho ser embaixador do Brasil nos EUA, o pai diz que o Messias deve dar filé mignon ao filho, mas a mãe repudia o fato como nepotismo.

Tem o episódio no qual o Exército matou um músico disparando mais de 80 tiros de fuzil e o Messias declarou na ocasião que “o Exército não matou ninguém, não; o Exército é do povo”. A mãe da aluna não tem dúvida do covarde assassinato, enquanto o pai diz que foi fatalidade. No caso do guru do Messias ter declarado que no governo só há “intrigas, sacanagem, egoísmo e vaidade”, a mãe da estudante garante que existe muito mais podridão, mas, o pai diz que é intriga da oposição.

E lembra quando o Messias pés de barro disse que “quem quiser vir aqui (no Brasil) fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, ao falar sobre o cancelamento dele em evento nos EUA por ser visto como homofóbico? A mãe da menina afirma que ele é “irracional, doente mental”, mas o pai garante que o presidente tem razão ao ter dito que “o Brasil não pode ser o país do mundo gay, de turismo gay”. E tem tantas outras controvérsias e polêmicas do Messias que, diz a estudante, infernizam a sua vida em casa. Ela fica, literalmente, no meio do fogo cruzado e pode pirar. Alucard registra o maior número de suicidas no país e tem mais mulheres que homens.

- O trem é doido, Marineth. Esse mito pés de barro não tem a menor noção do ridículo e é motivo de chacota, gozação, escárnio no exterior.

- Por fim, Athaliba, a aluna, que fica ao lado das posições defendidas pela mãe, finaliza a carta à profª Anabela achincalhando o Messias, rotulando-o de “boboca da corte”.

- Marineth, confio em que a Anabela, como historiadora, seja fiel narradora desses tempos de trevas da conjuntura brasileira e que tenha êxito ao buscar atenuar a conturbada convivência da aluna com os pais. Para suavizar o assunto ofereço “Poema da necessidade”, do saudoso poeta Antônio Crispim, que lista obrigações em crítica às expectativas sociais que a vida moderna impõe sobre nós:

“É preciso casar João,
É preciso suportar Antônio,
É preciso odiar Melquíades,
É preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
É preciso crer em Deus,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
É preciso estar sempre bêbado,
É preciso ler Baudelaire,
É preciso colher as flores
De que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
É preciso não assassiná-los,
É preciso ter mãos pálidas
E anunciar o FIM DO MUNDO”.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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