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Rio, no sufoco do caos, canta sambas para 2020

A imagem da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada, integrou o desfile da Mangueira, campeã do carnaval passado.  Por que e quem mandou matar a parlamentar. (Foto: Liesa)

“Dentro do caos econômico, político, cultural e de total falta de segurança, o Rio de Janeiro já canta os sambas-enredos das escolas do Grupo Especial para o carnaval 2020”.

A observação é do jornalista Lenin Novaes, em entrevista a O Folha de Minas. Colunista do jornal, com as Crônicas do Athaliba, ele ouviu os sambas e diz que a safra 2020 sacudirá a política e as arquibancadas da Passarela Prof. Darcy Ribeiro, o sambódromo, em uma disputa acirrada pelo título de campeã. O CD com os sambas-enredos, em fase de conclusão, estará à venda a partir da segunda quinzena deste mês. Entre autores dos sambas-enredos estão artistas como Sandra de Sá, Jorge Aragão, Dudu Nobre, Moacyr Luz, Paulo César Feital, Totonho e o humorista Marcelo Adinet. Alguns dos sambas-enredos foram encomendados, ou seja, excluiu-se a participação dos integrantes das alas de compositores. O jornalista repudia tal fato.

Lenin Novaes e José Louzeiro são autores da biografia da cantora Elza Soares, Cantando para não enlouquecer, artista homenageada pela Mocidade Independente de Padre Miguel, que utiliza o livro para desenvolver o enredo “Elza Deusa Soares”. O colunista d’O Folha de Minas é ligado às manifestações do samba, tendo integrado a comissão de carnaval do bloco Cacique de Ramos e fundado o jornal Vanguarda do Samba, órgão da Associação da Velha Guarda das Escolas de Samba, da qual foi diretor cultural. Além disso, integrou a coordenação de carnaval da TV Globo, na década de 80, quando exercia a função de sub-chefe de reportagem; e trabalhou na cobertura de muitos dos desfiles das escolas de samba quando repórter do jornal Última Hora. No jornal O Fluminense foi colunista de música popular e assessor da gravadora Copacabana. E mais: foi jurado dos desfiles das escolas de samba do grupo especial de São Paulo.

Ageu Ebert: Qual é o melhor samba, considerando que se trata de um dos quesitos de muita importância para o desfile?

Lenin Novaes - O samba-enredo, concretamente, influencia em outros diversos quesitos, como evolução, harmonia e bateria. Trata-se do carro-chefe da escola, apesar de sobressaírem luzes e cores de neon da arte plástica de alegorias gigantescas e fantasias luxuosas. Isso, além de tantos recursos visuais, como “sketista voador” no sambódromo, etc. e tal. O samba-enredo estimado de boa qualidade melódica, rítmica e poética, diz-se, carrega a escola nas costas. Ou seja, atrás do bom samba-enredo só não vai quem já morreu.

O saudoso Fernando Pamplona, carnavalesco da Acadêmicos do Salgueiro e crítico audaz dos mirabolantes, espalhafatosos e teatrais recursos que agigantaram os desfiles, tornando-os mercadorias de exportação, dizia que “tem sambas-enredos que não passam de marchinhas”. Tem sambas-enredos encomendados por diretorias de escolas, que eliminam as alas de compositores de disputas internas. Tem sambas-enredos que se ajustam às divisões de notas, compassos, etc. atendendo a enredos patrocinados, que proporcionam verbas extras às escolas.

No desfile de 2020, os sambas-enredos da Mocidade Independente de Padre Miguel e da Estação Primeira de Mangueira têm qualidades que agregarão componentes e expectadores. Os da Acadêmicos do Salgueiro e Beija-Flor também figuram na lista dos melhores para empolgar os desfiles. Não sei, no entanto, se alguns deles ficarão na boca do povo como “Aquarela do Brasil”, “Bahia de todos os santos”, “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”, “Peguei um ita no norte”, “Festa para um rei negro”, “É hoje o dia” e “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Além da obra-prima “Ao povo em forma de arte”, de Wilson Moreira e Nei Lopes para o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, em 1978.

Alegoria gigantesca, como esta da São Clemente, servem para encher os olhos dos turistas, fora de ritmo.  (Foto: Liesa)

Ageu Ebert: E quais os enredos que mais se destacam?

Lenin Novaes – A Estácio de Sá, com o tema “Pedra”, recordará os mineiros Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, respectivamente, com “a biodiversidade do cerrado e o relevo constituído pelo calcário, rocha maleável e moldável pela ação das águas; o Morro da Garça só emite recados porque é uma pirâmide no meio de Minas e de uma história imemorável do garimpo, da pecuária, dos boiadeiros viajantes e da surda vidência sertaneja”; e do Pico do Cauê, reduzido à imensa cratera pela exploração da mineração pela Vale, do qual o poeta diz que “Esta manhã acordo e não a encontro/Britada em bilhões de lascas/Deslizando em correia transportadora/Entupindo 150 vagões no trem-monstro de cinco locomotivas/Trem maior do mundo, tomem nota/Foge minha serra/Vai deixando meu corpo, a paisagem/Mísero pó de ferro/E este não passa”. Poucos entendiam a dor do poeta pela destruição do seu berço natal: Itabira.

A Acadêmicos do Salgueiro mostrará a saga do primeiro palhaço negro Benjamin Chaves, ou melhor, Benjamin de Oliveira, sobrenome que adotou, artisticamente. Mineiro do Pará, ele foi o idealizador e criador do primeiro circo-teatro, além de compositor, ator e cantor. Dizia que “minha popularidade crescia, uma vez até o presidente, o marechal de ferro, Floriano Peixoto, por eu cantar e dançar chulas, foi lá me cumprimentar”. O talentoso palhaço negro, enfim, ganhará justa homenagem e pode levar a vermelho e branco ao título de campeã, reafirmando o lema: “Salgueiro, nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”.

O enredo “Elza Deusa Soares” da Mocidade Independente de Padre Miguel proporcionará ao público uma leitura linear da trajetória artística da cantora Elza Soares. Do ventre da favela da Vila Vintém, berço da agremiação carnavalesca, a artista, com seu talento reconhecido com o título de “cantora brasileira do milênio”, em 1999, véspera do ano 2000, e forte personalidade, faz da arte musical o alimento da vida e, assim, tem superado as adversidades da existência. O tema pode surpreender no resultado final.

Com boas surpresas tem “Se essa rua fosse minha”, da Beija-Flor; “Onde moram os sonhos”, da Unidos da Tijuca; “Gigante pela própria natureza: Jaçanã e um índio chamado Brasil”, da Unidos de Vila Isabel; “O conto do vigário”, da São Clemente; “Guajupiá, terra sem males”, da Portela; “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: salve-se quem puder”, da União da Ilha; “Tata Londirá: o canto do caboclo no Quilombo de Caxias”, da Acadêmicos da Grande Rio; “O santo e o rei: encantarias de Sebastião”, da Paraíso do Tuiuti; “Viradouro de alma lavada”, da Unidos do Viradouro” e “A verdade vos fará livre”, da Mangueira. Este deve provocar boa polêmica, enfocando a atual conjuntura política, predominada de muita intolerância, racismo, homofobia, arrogância e incompetência administrativa.

Ageu Ebert: A disputa entre a Prefeitura e o Governo do Estado do Rio pela posse do sambódromo ainda persiste?

Lenin Novaes – Semana passada, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, prefeito do Rio; e o ex-juiz federal, Wilson José Witzel, governador do Rio, promoveram acordo para definir a administração da Passarela Prof. Darcy Ribeiro, o sambódromo. Com isso, o Witzel, que ameaçara assumir o principal palco do carnaval somente em 2021, antecipou para o ano que vem. Ele vai ressarcir, com R$ 8,1 milhões, a Prefeitura, cujo valor investirá na reforma do sambódromo. Apenas o Setor 11 permanecerá com a Riotur, órgão da Prefeitura, responsável pelos desfiles. A reforma terá cronograma rigoroso, com início das obras nos próximos dias e finalização antes do carnaval do próximo ano. Que a picuinha entre ambos vá para a vala!

Apesar de amargar e sofrer na carne e na alma a difícil situação política e econômica, além da catastrófica gestão de segurança e de saúde, devido à incompetência do ex-juiz federal e do bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, a população do Rio de Janeiro ainda não perdeu a alegria e o senso do bom humor. Creio que a tradição da maior manifestação cultural popular do povo brasileiro, o samba, é um eficiente antídoto contra as injustiças e diferenças na sociedade infligidas pelas elites dominantes. Mas, não se pode abdicar de lutar contra as injustiças.

O sentido do verso “É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe” do poetinha carioca Vinicius de Moraes, com os parceiros Marcelo Peixoto e Baden Powell, no “Samba da benção”, erradia o espírito de praticantes, frequentadores e admiradores da nossa maior manifestação cultural, principalmente nas quadras de ensaios das escolas de samba. É de lá que se propaga a resistência que mantém viva a chama da música brasileira que já atravessou as fronteiras do nosso planeta. O samba “Coisinha do pai”, de Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos, dizem, ainda ecoa na Lua.

Por fim, o samba depura, exorciza, expurga as mazelas que teimam em oprimir e obstruir os avanços naturais manifestados pelo povo. Como sinaliza os compositores Noca da Portela e Toninho Nascimento no samba “Peregrino”, gravado por Paulinho da Viola:

“Ninguém vive feliz se não puder falar/E a palavra mais linda é a que faz cantar/Todo samba, no fundo, é um canto de amor”.

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